Fundo

 

Onde que eu tô?

          no fundo.

 

    Pra onde que eu vou?

              pra dentro.

 

          Como sumir?

               vá longe.

 

       O que vai sobrar depois de tudo isso?

                 restarão suas artérias.

 

            E as outras partes?

                    estão aí.

 

                Sinto falta dela.

                      só vivos sentem falta.

  

        Por que eu sinto isso?

                 você é profunda.

 

  E pra que serve ser assim?

                        serve pra voltar e escrever um livro sobre respirar debaixo  d’água.

 

                 Voltar?

                 E onde é que eu tô?

                                  no fundo.


Com afeto pra ler nos dias de fundo do poço e lembrar da imensidão

eu sei, dói
gostar, dói
começar, dói
terminar, dói muito
e diante de tanta dor
ainda assim
doer vale mais a pena
do-que-não-sentir
nada

 

 

 

 


Plenitude dos Cacos

toda inteireza

é feita de pedaços


Tereza

olá, meu nome é Tereza. tudo que tenho é abril e seus últimos 15 dias. quando acordo tomo água pra acordar as borboletas. meu coração é todo costurado e nunca tem linha vermelha em casa – dessas que a gente usa pra combinar com a cor do tecido. preciso te dizer uma coisa, acontece  que coloquei a mão no coração de algumas pessoas, percebi que todas tem o mesmo problema – um barulho dentro que quer fugir do peito! vixe Tereza, toda vez que foge é um desespero, não consegue correr atrás, só vai. quando volta volta faminto querendo chamego quentinho de dentro. sábado no morro da caixa presenciei um evento cientifico: um afeto precisa de abrigo. morar dentro parece tão pequeno e Tereza ainda paga aluguel, sua voz está desaparecendo, saiu na endoscopia, não há pedras na vesícula “mas doutô, onde mostra as pedra da vida?”. Tereza precisa de fôlego, alinhar os chakras e não precisa escrever na pandemia, só se tiver fome, fome de vontade de dormir em cima do sopro quente da respiração de seu amor. morar dentro num cabe, doutô.


Valentina

algo me diz que vou durar pouco, essa estranheza carrego não sei desde quando – mas ainda assim, ando aqui, durando. tenho uma quietude desde pequena, minha mãe dizia que me deixava num canto e lá eu ficava horas, tinha o olhar triste. é louco, mas eu sinto como se estivesse sentada naquele banco que minha mãe me deixou, olhando as paredes verdes da casa, a tinta descascada nos cantos. gostava de brincar com a mandioca e achava bonito aquela água branca quando virava tucupi. sinto o cheiro, aqui. mana, tô aqui durando. um dia eu aceitei que sou assim, achadora de que a vida são alguns segundos que a gente não tem a certeza se vão acumular. daqui três anos terei três décadas e já acho que ando durando muito. talvez eu seja assim estranha porque não sei lidar com vida. não tem mal nisso, só que me dá um desespero – aí surge o amor. ele se veste assim, desesperado. quando aceitei as próprias estranhezas dormi de luz apagada e dormi tantos dias de luz apagada que perdi o medo dos barulhos no teto, e depois de perder o medo dos barulhos do teto, fiquei assim, com vontade de ser mãe e ver crescendo a barriga, nesse dia perdi o medo da dor. amo tanto que num cabe em mim, deve ser por isso essa coisa de querer ver as linhas dos pés daquilo que saiu de mim. é tipo pé de goiabeira, tão bonito que dá goiaba. é tipo rio que chega no mar. doce de leite quando vira sorvete. de repente me dei conta, quero durar muito


Ossinhos

 

Minha coluna dói. Que peso é esse que me curva e que me dobra aos trinta anos. Que peso é esse se não tenho mochila nas costas, se tudo que tenho agora é um corpo vestido. Investigo minha roupa, suas costuras esgarçadas, quantos quilos moram nesse tecido cheio de história manchada? Minha coluna dói. E eu me olho no espelho para ver se enxergo algum encosto. Ora, veja, seu moço, que veio do mundo morto, tenha a gentileza de dar umas andanças em gente mais forte, que faz atividade física, pilates, crossfit…tenha dó. Meu corpo é feito de uns ossinhos fracos, reumatismos, coração triste e olhos de chão. Por que me visitas seu moço do mundo morto?


Você ainda tá viva, menina?

Tenho intimidade tanta com a tristeza que às vezes ela me cutuca: “Você ainda tá viva menina? Ainda come aquela comida com pouco sal?” Quem me dera se dentro dessa tristeza preocupada morasse a cura enfim inaugurada para o coronavírus. Ah se fosse eu, sendo vírus, entraria nos governantes criminosos e devastaria seus pulmões para que não mais respirassem o mesmo ar das pessoas de coração graúdo. Essa cura sem lucro enriqueceria a barriga das crianças e minha tristeza se tornaria primeira-dama caso eu fosse eleita poeta das sonhadoras famintas.


Castela

Deitei no chão
como quem espera toda dor derramar
como quem espera virar o próprio chão
como quem espera ser abraçada pela dureza própria
daquela coisa chamada fim
deitei no chão
como artista criando intimidade com um palco
como pedreiro descansando no meio do mormaço
como poeta chorando um afeto vasto
deitar no chão é prova concreta
que doer é
também
cimento
cinzento
Reluzente
Reconstrói
ruínas
de gente que Sente,
Sente muito por ter caído

Tanto sentimento
reboco
que ela aprendeu a virar
c a s t e l a


Palafitas

frágil como um caminhão cegonha e suas amarrações que podem se desprender
frágil como montanhas que vieram de vulcões cheios de vida
e podem deslizar
como estradas de asfalto duro e quente que podem fechar por falta de manutenção
me sinto tão frágil
quanto as marretas de ferro que despregam da madeira que servem pra seu manuseio
tão frágil quanto o céu que despenca em chuva
frágil como a costura da roupa mais cara do mundo

(as coisas que carregam fragilidades imensas tem todo meu afeto)

estranhamente elas me lembram que
precisamos ter cuidado
com tudo

Então-
cuidemos,
y amemos as coisas imensas e frágeis
da gente


Bodozal

vida loka na infância
as crianças
pulavam os muros da escola
por tão pouco pulavam pra pegar
manga e carambola
no terreno dos outros
pulavam até pela adrenalina de pular
e apertar a campainha
sair correndo

às vezes tenho vontade de fazer isso com a gente
e ficar pra ver o que acontece quando se abre a porta
– sim, pois não, o que desejas juventude cansada
tu que eras a criança viada, como andas sobrevivendo
já olhou o topo das árvores
das mangueiras que tu subiu
há tanta fartura nelas
no verão
y veja, esses mesmos pés estão em
vinte e vinte
com seus olhos amuados
e dores nas costas antes dos 30

tempo amargo pra se ser jovem

há pouco emprego
mal vira o mês
chegam os boletos
acordam cansados
e sua amiga também diz que anda cansada
até
pra
amar.

eis a juventude que anda desistindo de tentar
num país que palavra desistência
nem cabe nos livros proibidos de tantas palavras
– é indecente com tua infância
cansar de ter que amar outra pessoa
de arrumar tempo pra outras pessoas,
para conhecê-las
y festejar as pequenas descobertas
os contratempos
de se desentender e aprender que faz parte do amor
resolver

minha querida juventude cansada
arrume a coluna, ainda há tempo
beba água, escreva teus desejos no bloco de notas do celular
ou no caderno, na geladeira, nos azulejos do banheiro
Escreva
para se lembrar dos piqueniques que você fazia até sem ter o que comer
as coisas mudam, as faturas acabam

e arrume tempo pro amor…
os bancos não gostam disso